Cotas

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Fonte: http://levantepopulardajuventude.blogspot.ro/2012/08/exercito-anto-cotas-tropa-da-elite.html

Novamente o assunto das cotas está em pauta. Dessa vez o debate não envolve negros, mas mulheres. Como era de se esperar, a maioria é radicalmente contra propostas do gênero e ao conceito de ação afirmativa no geral. A argumentação anti-cotas é tipicamente a mesma: a de que esse tipo de abordagem é “anti-democrática”, “injusta”, “discriminativa”, “desigual” etc. Embora eu concorde que essa não seja uma solução ideal, esse argumento não se sustenta. Pode até ser que existam motivos legítimos para sermos céticos com relação a cotas e ação afirmativa no geral, mas os mais usados certamente não fazem parte deles e eu vou tentar explicar por quê.

Esse ano o congresso está discutindo a reforma política. Uma das várias propostas em discussão é a da deputada professora Dorinha, que defende uma cota de 30% para mulheres na política.

Semana passada recebi um email periódico do Votenaweb que nos convidava a opinar nesse projeto de lei. Como esperava, a opinião popular não foi muito favorável.

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Isso é discriminação! Todos são iguais perante a lei!

Essa ideia de que “justiça” equivale a um tratamento cegamente igualitário a todos os indivíduos independente de qualquer coisa pode parecer atrativa à primeira vista mas é uma forma simplista de ver as coisas e não resiste a nenhuma inspeção um pouco mais cuidadosa. Todo ser humano é tratado de forma diferente tanto legalmente quanto socialmente dependendo de uma série de categorias relevantes. Crianças, idosos, deficientes etc. têm todos tratamento especial e nenhuma pessoa sã questiona isso.

Vamos supor que o governo resolveu implementar um projeto de distribuição de aparelhos auditivos para pessoas com deficiência. Ora, esse é uma abordagem injusta por mais que o objetivo seja nobre. Afinal, por que você não recebe também aparelhos auditivos? Será que você seria contra? Peraí, o quê você disse? Que não precisa de aparelho auditivo? Aha, foi o que eu pensei. Esse é meu ponto. Você não precisa. Para quem não sabe, já é possível adquirir aparelho auditivo pelo SUS[ref]SUS já ofereceu mais de 600 mil aparelhos auditivos nos últimos três anos[/ref]. Eu nunca ouvi ninguém reclamar.

Note que esse não foi nem um argumento a favor da cota para mulheres (ou qualquer grupo específico), embora eu simpatize com a ideia. Foi apenas um argumento contra esse discurso de “injustiça” usado ad nauseam para atacar o conceito de cotas. O importante é entender que as coisas não são tão preto e branco. Você pode discordar dessa proposta específica, mas ela não é fundamentalmente ilegítima a princípio.

“Em sua majestosa igualdade, a lei proíbe tanto o rico quanto o pobre de dormir sob pontes, pedir esmola na rua e roubar pão.” – Anatole France

Justiça é tratar os iguais de forma igual, mas os desiguais de forma desigual, na medida que suas diferenças exigirem.

O tempo todo na sociedade pessoas são tratadas de forma diferenciada em função de suas necessidades e ninguém reclama. O governo distribui gratuitamente aparelhos auditivos a portadores de deficiência auditiva, óculos para pessoas com problemas de vista[ref]Óculos Gratuitos Para Pacientes Do SUS[/ref], institutos oferecem bolsas para estudantes de baixa renda[ref]Instituto oferece auxílio financeiro para universitários de baixa renda[/ref] e poucos têm reações negativas (uma busca por “gratuito” ou “deficiência” no Votenaweb ilustra bem isso). “Justiça” e “igualdade” em si, portanto, claramente não são o problema.

Se ainda assim você sente um incômodo inconsolável quando ouve “cotas para mulheres”, pense nisso: se a cota de 30% fosse tanto para mulheres quanto para homens, você ficaria satisfeito?

Cota é o famoso jeitinho brasileiro!!!

Vários países garantem a participação de mulheres na política através da implementação de cotas impostas por lei, incluindo Argentina, Portugal, Espanha, França e Bélgica. Em outros países altamente desenvolvidos, como Canadá, Austrália, Alemanha e os países escandinavos, famosos pela sua igualdade de gêneros, as cotas são impostas não pelo estado em si, mas voluntariamente pelos partidos políticos.[ref]Global Database of Quotas for Women[/ref]

Essa proposta é sexista! Mulheres não são menos capazes do que homens!

Intrinsecamente não mas, estatisticamente, sim.

“quando um indivíduo ou um grupo de indivíduos é mantido numa situação de inferioridade, êle é de fato inferior; mas é sobre o alcance da palavra ser que precisamos entender-nos; a má-fé consiste em dar-lhe um valor substancial quando tem o sentido dinâmico hegeláano: ser é ter-se tornado, é ter sido feito tal qual se manifesta. Sim, as mulheres, em seu conjunto, são hoje inferiores aos homens, isto é, sua situação oferece-lhes possibilidades menores: o problema consiste em saber se esse estado de coisas deve perpetuar-se.” – Simone de Beauvoir, O Segundo Sexo

Negar que existe desigualdade e simplesmente fingir que está tudo bem e que mulheres e homens são criados, educados e socializados da mesma forma só colabora para a perpetuação do status quo. É preciso aceitar que o problema existe para que possamos começar a tentar resolvê-lo.

Ora, se estatisticamente as mulheres estão de fato menos preparadas, então ainda não devem assumir esses cargos!

Esse argumento até tem alguma lógica. Mas ainda é pouco convincente. De fato é provável que existam menos mulheres preparadas para a política do que homens atualmente. Mas esse não é o único fator que as mantém longe da política. Além de não serem encorajadas pela sociedade a perseverar na carreira ou sequer tentá-la, o eleitorado brasileiro ainda é conservador e está acostumado a homens na política. Sim, uma mulher foi eleita e reeleita como presidente da república, poderia ser muito pior. Mas ainda assim os números relativos à participação feminina na política em geral são chocantes:

“Atualmente, temos 51 mulheres ocupando cargos de deputadas federais, e 462 homens. No senado as mulheres ocupam apenas 13 das 81 vagas.” – Votenaweb

Isso é 10% e 16%, respectivamente. É até legítimo alertar para o perigo de se forçar a entrada de mulheres na política sem que a sociedade esteja preparada e sem que existam mulheres prontas para preencher os cargos. Mas a proposta não é nem de 50%, como deveria ser o alvo em um sistema representativo ideal, mas de 30%. Tenho convicção que existem 174 mulheres competentes para assumir esses cargos.

Não importa, a única forma justa de se competir por um cargo é por mérito!

Toda discussão sobre cotas é em última análise uma discussão sobre meritocracia. Esse é o único argumento que realmente não pode ser refutado de forma trivial. De fato meritocracia vs. justiça social é um dilema complexo, que divide inclusive filósofos no mundo inteiro e que não vou abordar extensivamente nesse texto. Mas para nos engajarmos em um debate honesto a respeito de políticas públicas, é importante reconhecer a complexidade do problema e a legitimidade de diferentes opiniões.

É claro que, no dia que existir igualdade de oportunidade, a meritocracia será justa. Mas até então, ela só colabora para manter o status quo. Se você acha justo numa democracia que metade da população seja sistematicamente sub-representada, então não tenho certeza se você entende o que é uma democracia representativa. Além do mais, a legislatura não é uma profissão liberal. Sua função não se resume à aplicação imparcial de um conhecimento técnico. A função do legislador é legislar como representante do povo. Por isso ele é eleito. Nenhum cargo disputado por eleição é puramente meritocrático. É claro, a competência técnica certamente é um dos fatores que o eleitor pode (e deve) levar em consideração, mas numa população que elege Tiririca e Clodovil, sinceramente, eu não sei que meritocracia é essa que está sendo quebrada.

Uma coisa é certa: um sistema 100% meritocrático é incompatível com a democracia representativa e uma loteria 0% meritocrática é imprudente e impraticável . A questão em jogo é determinar qual é o equilíbrio ótimo entre mérito e representatividade. Mas essa é uma questão complexa. Descartar a ideia de cotas como “um absurdo, uma falta de vergonha na cara, uma coisa de feminazi, de comunista, um jeitinho brasileiro, uma afronta à meritocracia pura que é o único critério válido de se disputar por um cargo” etc. é uma atitude extremamente ignorante e imatura que só mostra que sua opinião é pessimamente justificada.

Conclusão

Cotas são a solução perfeita? Não. Idealmente a sociedade deveria mudar de baixo para cima e as mulheres deveriam ser tão encorajadas pela família, amigos, escola, mídia etc. a participar da política quanto homens. Mas essa é uma mudança social profunda e a longo prazo. As cotas são uma medida artificial usada para forçar uma mínima igualdade a curto prazo na esperança de que isso dê um impulso adicional na mudança social que, embora felizmente já venha acontecendo há muitos anos, ainda está longe de ser suficiente. Idealmente cotas devem ser temporárias, e quando deixarem de fazer efeito podem ser removidas. A deputada está tentando dar esse impulso na sociedade através dessa legislação, mas tenho certeza que não é a única forma de ação que ela defende para mudar a sociedade.

Será que existem alternativas melhores? Talvez. Mas é difícil pensar de que forma cotas podem efetivamente atrapalhar. Esse é um dos fatores que torna muito difícil para mim entender o ódio com que as pessoas atacam propostas do tipo. Não consigo imaginar nenhuma alternativa que não possa simplesmente ser implementada em paralelo a cotas. Será que, ao implementarmos uma solução provisória e imperfeita, nós necessariamente “relaxamos” e deixamos de trabalhar em soluções mais profundas e de longo prazo, como alguns sugerem? Pode até ser, mas essa é só uma das infinitas possibilidades e é altamente especulativa. Usá-la para atacar qualquer proposta de solução que não seja perfeita é um exemplo clássico da falácia do Nirvana (ou falácia da solução perfeita), em que toda proposta que não é perfeita é atacada por ser pior do que uma suposta solução ideal que na prática é irrealizável.

O que parece é que, no fundo, a primeira reação quando as pessoas ouvem falar de cotas é involuntária: um puro incômodo sem explicação racional. Faz sentido. 86% dos homens votaram contra a proposta, enquanto 53% das mulheres votaram a favor. Mudanças sempre incomodam mais aqueles privilegiados pelo status quo. Depois da intuição, vem a justificação. Até aí tudo bem, afinal todos têm direito a suas opiniões e toda nossa ética em última análise se baseia em intuições morais básicas que combinamos de formas diferentes para construir teorias complexas. O problema é quando essa justificação deixa de ser um processo de reflexão honesto e se torna uma mera racionalização feita em dois segundos antes de se postar um comentário raivoso e simplista em alguma discussão pública na internet, destruindo qualquer possibilidade de um debate maduro e construtivo. Defenda aquilo em que você acreditar, mas por favor, com mais argumentos bem pensados e menos regurgitação automática de clichés reacionários.

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